Resenha - Que horas ela volta?
- Bárbara Cabral
- 20 de nov. de 2015
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de abr. de 2020

Em meio à enxurrada de filmes cômicos, de ação, terror, entre outros, enfiados goela abaixo nos cinemas brasileiros, eis que surge “Que horas ela volta?”, escrito e dirigido por Ana Muylaert . Lançado em 25 de agosto deste ano, a trama mostra que o cinema nacional não é só feito de comédias (sem graça) exibidas ano a ano como preferência do púbico. O filme é uma crítica dura à desigualdade social brasileira.
A obra conta a história da pernambucana Val, interpretada por Regina Casé, que viaja para São Paulo em busca de uma vida melhor para sua filha, Jéssica, que acaba permanecendo no nordeste brasileiro. Chegando à cidade grande, a mulher arruma um emprego na casa de uma família de classe média alta, onde acaba morando e trabalhando de babá e empregada doméstica. O tempo passa e Val se distancia da filha, que treze anos depois a contata dizendo que precisará se juntar a ela, pois irá prestar vestibular para uma universidade da capital.
Regina Casé interpreta de forma formidável a humilde e simpática Val. Simples e comovente, a personagem é tão próxima da realidade brasileira que faz-nos sentir em casa, nos transportando para dentro do filme. Durante as cenas, rimos com a ingenuidade e sinceridade da personagem, ficamos irritados quando a mesma é tratada mal, enfim, nos tornamos defensores da cativante Val. Destaque também para a interpretação de Karine Teles, que vive a patroa, Bárbara. A atriz desempenha o papel de forma convincente, desde a expressão de arrogância e superioridade à forma de falar e de andar. Em muitos momentos queremos entrar na tela e falar umas verdades para a “megera”.
Já a filha de Val, vivida por Camilla Márdila, também não passa despercebida. A menina é um dos pontos altos do filme e muda grande parte do percurso da história. Diferente da mãe, Jéssica não aceita o título de inferior aos patrões e tanto faz que acaba recebendo a ira de Bárbara, que, mesmo de forma modesta, sempre acha um jeito de fazer com que mãe e filha sejam colocadas no “devido lugar”, abaixo, mas bem abaixo do nível dela.
O tema de denúncia do filme chegou na época perfeita, em que uma das questões mais discutidas da sociedade é a desigualdade e a democracia. A dinâmica usada pela autora é perfeita e deixa explícito, do início ao fim, o tema da obra. A autora nos apresenta um cenário onde, bem ou mal, duas famílias vivem sob o mesmo teto. Uma é a família rica da alta sociedade e a outra a “proletária”, que vive em função e para a primeira. Uma das cenas que mostram isso, é quando Jéssica acaba sendo empurrada para dentro da piscina da casa dos patrões. Minutos depois, Bárbara liga para um funcionário responsável pela limpeza da piscina e ao comunicar Val, mente dizendo que tinha visto um rato na água. Jéssica, que não é boba, logo entende quem era o "rato" da história. A filha de Val acaba sendo o elo que aos poucos vai libertando a mãe do complexo de inferioridade.
Outro momento importante do filme, que denuncia o preconceito entre as classes, é uma das cenas de discussão entre Val e a filha. Jéssica questiona, de forma sarcástica, onde a mãe teria aprendido que não pode fazer isso ou aquilo, e a mesma reponde que “a pessoa já nasce sabendo o que pode e o que não pode”. De forma indireta (ou direta), o roteiro faz uma crítica à política criada para separar o rico do pobre, onde, obviamente, o segundo é o mais prejudicado.
Uma das partes que mais chamam a atenção é o momento que Val, pela primeira vez, após anos de trabalho, entra na piscina da casa. Este é o momento em que a personagem finalmente parece ter refletido sobre sua vida naquele lugar. É o momento de triunfo da empregada. Nas cenas seguintes, a mesma pede demissão do trabalho e vai morar com a filha na sonhada casa paga com as economias acumuladas há anos.
A cena final do filme é, sem dúvidas, uma das mais bonitas da obra. Depois de descobrir que Jéssica tinha um filho de três anos, Val pede para a filha, que passou no vestibular da temida Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), trazer o neto para viver com elas em São Paulo. Neste momento, a personagem vê a oportunidade de não deixar a história se repetir, impedindo que mais uma criança cresça se perguntando “Que horas ela volta?”, fazendo a coisa certa, reconstituindo o relacionamento com a filha e cuidando da sua verdadeira família.
O filme não abusa de efeitos especiais, romances apelativos, comédias clichês ou de qualquer outra tática que ganha facilmente a graça do público tradicional do cinema. Ele é simples e direto, e facilmente admirado por qualquer um que consiga enxergar o reflexo da triste sociedade em que vive. Agora é esperar que a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2016 não seja frustrada como em 1999, quando o também excelente “Central do Brasil” concorreu à premiação.
Assista ao trailer: