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In memoriam de Finados

  • Nelson Nuffer
  • há 1 minuto
  • 6 min de leitura

Este foi um trabalho da disciplina Narrativas Jornalísticas II, ministrado para alunos do 4º período de Jornalismo do UNIFLU, em 2024.


Cemitério do Caju, em Campos dos Goytacazes. (Fotos: Nelson Nuffer)
Cemitério do Caju, em Campos dos Goytacazes. (Fotos: Nelson Nuffer)

Com roupas simples, uma camiseta rosa choque, um short jeans e chinelos, a moça do cabelo alisado, preso em um pequeno rabo-de-cavalo, caminhando na dianteira do grupo, composto por um casal de adolescentes, com roupas também bem simples, carregando vassouras, baldes e garrafas que poderiam ter qualquer tipo de produto dentro, ou até mesmo água. “Quando eu morrer, vai ficar tudo aí!”, a moça esbravejou para o grupo, sem nem mesmo fazer contato visual com os que lentamente a acompanhavam. “É por isso que a gente cuida em vida…” comentou o meu pai, em tom mais reduzido para que só eu ouvisse, enquanto seguíamos na rua principal do Cemitério do Caju, em direção ao túmulo do lado paterno da minha família.



O 2 de novembro de 2024 começou cedo, às 8h da manhã já estava em direção à casa do meu pai. “Primeiro eu preciso passar no Campo da Paz, vai querer ir?” me perguntou. Fomos visitar uma conhecida lá, trabalhou por muitos anos na casa do meu do meu pai, faleceu há alguns anos. O dia era… com a cara de Finados. Quando não chove, no caso. O calor abafado e seco do começo de novembro -a cada ano mais abafado e mais seco- com nuvens que, apesar de pintarem o céu de cinza, não deixam dúvidas que a chuva não vai chegar, e se posicionam exatamente para dar lugar para o Sol, garantindo, então, mais calor. 

Campo da Paz, Campos dos Goytacazes
Campo da Paz, Campos dos Goytacazes

Há alguns metros da entrada do Campo da Paz, uma barraquinha estava montada na calçada, com uma mesinha cheia de papeis e algumas pessoas segurando uma plaquinha com os dizeres “ABRAÇOS GRÁTIS”. Quando o trânsito fez o nosso carro parar, perto da barraquinha, um rapaz se aproximou da janela, queria nos entregar um panfleto com um docinho. “Mesmo sendo de graça eu não quero, não. Obrigado”, meu pai cortou de forma seca. Pelo jeito não tinha muita paciência para o proselitismo evangélico no dia. Lápide visitada, flores arrumadas e orações feitas, o caminho de volta para o carro, seguido do rumo ao Cemitério do Caju, teria o retorno do assunto de proselitismo. “Ih, sua tia criou um ‘grupo da família’ -não sei nem porquê você não entrou, sua irmã estava lá-, mas deu a maior confusão. Os crentes da família começaram com as conversas deles e logo já tinha subgrupos, e no final foi cada um pro seu canto”. Não seria meu último contato com evangélicos ou conversa sobre eles no dia.


Vendo de longe, parecia até dia de festa na frente do Cemitério do Caju. Os bares em frente estavam abarrotados de gente, muitos grupos indo e vindo ao longo da Avenida XV de Novembro, carro de som, caixas de som, música, discursos, pregações, vendedores ambulantes, guardas municipais e policiais civis e militares. Na calçada do cemitério havia diversas tendas com vendas de vários tipos de itens religiosos. O ar é carregado da mistura dos cheiros característicos de flores e velas. “O ano passado foi muito mais movimentado, tinha muito mais pessoas, o fluxo de pessoas foi bem maior durante a manhã e hoje infelizmente tá mais fraquinho”, disse Maria Luíza, jovem florista na barraquinha imediatamente ao lado do portão do cemitério. Perguntei como é trabalhar vendendo as flores em um dia como esse (Finados). “Tem sido bem tranquilo, graças a Deus”, ela comenta, arrumando um pequeno conjunto de flores amarelas. “Não vejo desespero de ninguém, tá todo mundo muito tranquilo, acho que todo mundo de muito coração aberto trata a gente super bem, a gente também trata super bem, então tem sido bem descontraído”, concluiu, junto do arranjo de flores, que foi para o túmulo da minha avó.


Velaria na entrada do Cemiterio do Caju
Velaria na entrada do Cemiterio do Caju

Logo atravessando os portões, a primeira sensação era (mais) calor. O velário, posicionado no meio da rua principal do cemitério, não ficava muito distante, e o fogo já estava fazendo sua presença ser sentida. Bem encostado na parede do velário, sacos de pipoca e copos cheios, provavelmente de cachaça. “Ô tio, tá precisando que faça uma limpezinha? A gente deixa bem bonito!”, “Picolé Pingo Doce!”, “Bom dia! O senhor tem um minutinho só pra ouvir a palavra? Quer levar uma edição do nosso jornal?” São as interações de destaque pelo caminho, entre as conversas dos grupos e famílias indo fazer suas visitas. Essas conversas, acontecendo de forma triste, feliz, aliviada, humorada, conversas de trabalho, do resto da vida, daqueles que estão vivos e, de vez em quando, daqueles que já não estão.


O túmulo em que descansa minha avó marca o tempo. Uma das finas paredes do local para posicionar as flores estava quebrado. É assim desde que me lembro. A aula que eu tive com a historiadora Sylvia Paes, especialista e aficionada por cemitérios, logo me veio à memória. “Roubam todas as letrinhas e enfeites, principalmente de metal, por isso que hoje em dia o pessoal faz a epigrafia” disse ela. Meu pai descansa as flores em cima da lápide “Não tem mais onde colocar, desculpa”, diz para a minha avó. Uma parte da família já foi visitada, agora seguimos para a próxima.


Passando perto de uma ambulância, o enfermeiro estava tentando tomar decisões sobre o almoço com o motorista. “Vamos ficar aqui, vai dar meio-dia, uma hora… Vou pedir aqui no iFood, 19 conto”, diz. Chegando no túmulo de destino, mais à frente, já era uma área com bem menos pessoas, talvez pela falta da sombra das árvores que cobrem toda a rua principal. Flores entregues, orações feitas. “Vou visitar o meu amigo, mas não me lembro onde é. Quer ir lá pra frente pra esperar? É mais agradável”, e com isso, meu pai se dirigiu à uma parte do cemitério que eu nunca fui. Resolvi voltar.


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Encontrei o motorista da ambulância sozinho no veículo, troco algumas palavras com ele. Para Ronaldo Felipe, o Dia de Finados não é muito diferente de qualquer outra jornada de trabalho. “A gente tenta uma abordagem leve”, diz. “A dor da saudade não é uma dor que passa fácil, e quem vem aqui não sente porque quer. A gente só tenta não piorar o estado da pessoa”. Durante a interação, o enfermeiro retorna, e adiciona à conversa: “Algumas pessoas não se alimentam, algumas pessoas não se hidratam e tudo isso vem a acarretar o mal estar. Mas graças a Deus nada, nada grave acontece”, e logo ao afirmar, somos abordados por uma moça. “Gente, uma senhora tá passando mal ali na frente. Acho que não vai conseguir sair sozinha. Não conheço ela, só estava por perto e corri aqui!”, disse a mulher enquanto a dupla já se preparava para ir socorrer a senhora. Sigo meu caminho para a entrada do cemitério.


“Com licença, tem um minutinho?” Claro que tinha. Acompanhei o homem até a tenda de um grupo evangélico, instalada em uma calçada um pouco antes da capela do cemitério. Diego Nogueira tem uma voz suave e um olhar gentil. Falava com calma e gesticulava com muito cuidado. “Sou voluntário do grupo de evangelização, a gente traz uma palavra de conforto às pessoas que no dia de hoje, porque são pessoas que aparecem aqui e ainda sentem dor de uma perda da pessoa. A palavra poder consolar as pessoas pra poder confortar as hoje nesse dia de hoje”, disse. Quando me dei conta, todos os voluntários, cerca de 15 pessoas, estavam de mãos dadas, olhos fechados, e um homem de voz tonitruante já tinha começado a pregação. Percebi que a mesa em que me sentei estava bem no meio da roda de oração. Diego já estava de olhos fechados e cabeça abaixada. “Desculpa, eu atrapalhei vocês né?”, perguntou o orador. Disse que não, eu que fiquei com medo de estar atrapalhando alguma coisa, trocamos risos breves. Ao me despedir de Diego, pergunto se posso ficar com uma edição do jornal evangélico. “Claro, pode levar!”, respondeu, me entregando o folhetim com um sorriso aberto.


Muito próximo à entrada do cemitério, fica a casa da administração. Luiz Cláudio, gerente de Cemitérios, fica no balcão para dar informações e tirar as dúvidas. “Nesse período de finados fica bem movimentado, e se mantém durante o dia. Há anos que dá uma caída mas a média é entre quarenta a sessenta mil visitantes, contamos os 24 cemitérios. A gente tem o Caju que é a central e temos mais 23 cemitério espalhados, dividido em três blocos pelo município”, afirma Luiz. 


Logo em frente à administração, uma mesa com várias senhoras sentadas, almoçando, conversando e rindo. Rosemary Laurindo é uma delas, me conta que são uma equipe de apoio durante o Dia de Finados. “Se a pessoa precisar de ajuda, alguma reclamação, se a pessoa é de idade, esquece, aí a gente como voluntário, conversa com o Luiz, que nos explica como levar os familiares até o túmulo”, conta, enquanto a outra parte do grupo se pergunta se vão comprar o picolé para a sobremesa.


Finalmente, vejo meu pai chegando. “Nem tive que procurar muito, o Amaro estava bem ali do lado!”, disse ele, desviando do repórter e da câmera, posicionados no meio da rua do cemitério. “Você conhece eles? São da Globo né…Sempre tem que ter alguma matéria dessas coisas, o problema é que deve ser ruim trabalhar assim no meio do feriado”, concluiu já seguindo para o portão. “Pai, tem gente trabalhando pra todo lado aqui…” respondi, com ele concordando com a cabeça.


 
 
 

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