Garden: raízes, cor e pertencimento em Campos
- Luana Clara Marques Alves
- há 4 horas
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Este foi um trabalho da disciplina Narrativas Jornalísticas II, ministrada para alunos do 4º período de Jornalismo do UNIFLU, em 2025.

Garden tem 23 anos e pinta como quem tenta costurar passado e futuro com as próprias mãos. Filha de mãe solo e criada também pela avó e sua tia, três mulheres que sustentam a casa e a história da família, ela cresceu no Parque Aurora, um bairro periférico de Campos dos Goytacazes onde as ruas são mais estreitas e o acesso à arte, quase sempre, chega tarde. Foi nesse território que descobriu a pintura, ainda criança, rabiscando cadernos enquanto observava o movimento da rua pela janela. Hoje, como jovem artista negra, estudante de Ciências Sociais e alguém que também flerta com a discotecagem, ela transforma essas vivências em cor, textura e narrativa.
A formação em Ciências Sociais atravessa seu trabalho de forma natural. Entre um semestre e outro, Garden lê sobre desigualdade, identidade, território e processos históricos, temas que acabam surgindo nas telas sem que ela perceba. Pintar virou uma forma de traduzir questões que nem sempre cabem em palavras. A sociologia ajuda a organizar o pensamento; a arte, a respirar. Já o universo da música, especialmente do DJ, aparece como outra vertente de experimentação. “Eu gosto da energia, do ritmo, do encontro. Acho que tudo que cria sensações me interessa”, diz, rindo.
Ser uma jovem artista negra no interior do Estado do Rio significa atravessar barreiras todos os dias, algumas visíveis, outras silenciosas.
Ainda assim, insistiu. E quando a avó lhe deu o primeiro kit de tinta guache, ela sentiu que aquele gesto cabia mais no coração do que na prateleira da sala. “Eu lembro que fiquei horas testando as cores. Foi quando percebi que existia mais pra mim,sabe?” conta. Ao longo dos anos, transformou o improviso em linguagem: paredes viraram telas; a casa, um ateliê possível.

A casa do Parque Aurora , com seu portão simples, suas plantas e o barulho constante do bairro, aparece em muitos de seus quadros. É a materialização de tudo o que fez parte de sua formação. Ali estão a força da mãe que acordava cedo, a doçura dura da avó que nunca descansava e a sensação de crescer em um lugar onde não há garantias, apenas tentativas. Garden pinta essas memórias como quem recompõe o mapa afetivo da própria história.
Foi justamente retratando essa casa que ela viveu um dos momentos mais importantes de sua trajetória. A tela, que estará anexada a esta reportagem, marca a primeira vez que sentiu pertencimento à cidade através da arte. “Foi a primeira vez que consegui me conectar com Campos pensando no caminho da minha família. Eu me senti parte daqui de verdade, pela arte. Como se eu finalmente tivesse conseguido entender de onde eu venho”, diz. Esse sentimento, que poderia passar despercebido para quem só vê a imagem pronta, é um renascimento para ela.
Garden sabe que sua presença, enquanto jovem mulher negra artista, já é um ato político, mas não sobrecarrega sua produção de slogans ou obrigações. Como ela mesma diz, sua arte “é resistência porque existe”. A leveza também é um lugar possível.
O percurso, no entanto, não é simples. A falta de materiais, espaços de exposição e apoio financeiro pesa. A maioria dos artistas independentes de Campos enfrenta uma rotina de improviso: produzir, divulgar, negociar, entregar, tudo de forma autônoma. Apesar disso, Garden encontra na comunidade do Parque Aurora um de seus maiores motores. Vizinhos comentam as pinturas, amigos ajudam nos registros, crianças perguntam quando poderão aprender a pintar com ela. “Eu quero muito criar oficinas no bairro. Quero que outras meninas pretas cresçam sabendo que a arte também é delas”, diz.
Em paralelo, ela segue estudando Ciências Sociais na UENF. A universidade a incentiva a enxergar sua obra de forma crítica — não como produto isolado, mas como resultado de vivências coletivas. “Tudo que eu pinto tem a ver com outras pessoas também”, explica.
A identidade sonora, que surge quando ela se arrisca como DJ em festas independentes da cidade, complementa sua trajetória. A música amplia sua noção de estética e ritmo. É como se a pintura fosse silêncio e, ao mesmo tempo, batida.
No fim das contas, Garden é a soma de tudo isso: a criança que pintava escondida, a adolescente que cresceu entre duas mulheres fortes, a jovem negra que rasga brechas para existir artisticamente em um cenário ainda desigual. Seu trabalho conversa com direitos humanos quando fala de território, com minorias sociais quando representa mulheres negras, com meio ambiente quando insiste em pintar as árvores do bairro que ninguém olha.
Sua obra nasce do que vive, mas também do que deseja: uma cidade onde jovens periféricos tenham acesso ao que antes era distante; onde artistas negros não precisem provar o dobro; onde uma menina do Parque Aurora possa crescer sabendo que sua história não começa na falta, mas na potência.
Garden, hoje, pinta para pertencer e, ao mesmo tempo, para que outras pessoas também se encontrem. Suas telas são portas abertas. Suas cores falam. E sua cidade, aos poucos, começa a escutá-la.




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