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Pelos olhos dela: a força de histórias reais

  • Mariana Alves
  • há 3 horas
  • 9 min de leitura

Este foi um trabalho da disciplina Narrativas Jornalísticas II, ministrada para alunos do 4º período de Jornalismo do UNIFLU, em 2025.


Carolina de Cássia (Foto: Arquivo Pessoal)
Carolina de Cássia (Foto: Arquivo Pessoal)

Conseguir um tempo para conversar com Carolina de Cássia, “Carol” como é chamada pelos amigos, foi difícil. Sua agenda está sempre apertada, dividindo seu tempo entre o trabalho de assistente social na secretária de educação e seus documentários. Comecei minha conversa com Carol pedindo para ela se apresentar e falar um pouco sobre sua trajetória de vida. Ela começa me contando que nasceu em Cardoso Moreira, filha de pais trabalhadores e que estudou em colégio católico, aos 16 anos conseguiu seu primeiro emprego de auxiliar de dentista e depois migrou para o comércio, onde seguiu trabalhando mesmo após se formar como assistente social na UFF.


Cardoso Moreira (Foto: Divulgação/Prefeitura de Cardoso Moreira)
Cardoso Moreira (Foto: Divulgação/Prefeitura de Cardoso Moreira)

Foi em 1986 durante sua formação, que surgiu o primeiro alicerce de uma trajetória marcada por compromisso e militância. Ela costuma dizer que recebeu ali uma base teórica e prática sólida, sustentada por excelentes professores e mestres e que aprendeu que a intervenção do assistente social precisa ser rigorosamente ética e comprometida com o projeto ético-político da profissão, sempre alinhado com a classe trabalhadora.


Envolvimento com Causas Sociais e Militância

Mas seu engajamento social começou muito antes do diploma. Em 1986, no Projeto Rondon, ela pisou pela primeira vez em uma comunidade periférica: a favela Beira da Linha. Aquele encontro transformou sua forma de ver o mundo. Logo depois, envolveu-se profundamente com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ajudando a trazer o movimento para Campos e iniciando um trabalho com crianças de rua, até passar em um concurso para trabalhar no Espírito Santo.


Em 1998, quando o Movimento dos Sem-Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) chegaram a Campos, ela se aproximou imediatamente e passou a acompanhar as lutas pela terra. Desde então, sua relação com os trabalhadores rurais se tornou parte central da sua vida profissional e pessoal. Trabalhou com trabalhadores do corte de cana e mais tarde, no distrito de Travessão, onde segue atuando até hoje ao lado de comunidades que têm no trabalho rural sua base de existência. Essa história de atuação direta com populações rurais, negras, periféricas e indígenas moldou profundamente seu olhar. Ela diz que tudo isso (a formação universitária, a militância, a prática profissional, o vínculo orgânico com os movimentos sociais) a ajudou a construir a perspectiva a partir da qual realiza seus documentários. Uma perspectiva decolonial, voltada a reconhecer e valorizar os saberes da população negra e dos descendentes de povos indígenas, saberes que por tanto tempo foram marginalizados. Seu trabalho no audiovisual, assim como no Serviço Social, nasce do mesmo lugar: o desejo de dar visibilidade a formas de vida, resistência e sabedoria que a sociedade por vezes insiste em ignorar. Ela filma porque acredita em um projeto de mundo diferente, mais socialmente e culturalmente justo.


O Começo no Audiovisual

O audiovisual entrou na vida dela de maneira inesperada, quase acidental, como um sopro que antecede a tempestade. Foi exatamente uma ou duas semanas antes do lockdown decretado no Brasil, no início da pandemia de Covid-19. Naquele momento, ela tinha uma ideia simples, mas urgente: contar a experiência do coletivo Cabrum Cannabis um grupo antiproibicionista que acompanhava e orientava pessoas no uso terapêutico da cannabis. Encantada pelo trabalho que testemunhava, sentia que aquela história precisava ser registrada. Durante um tempo, tentou convencer universidades, cineastas e pesquisadores de Campos a registrar narrativas locais: a luta pela terra, a resistência dos quilombos, a força das comunidades rurais. Nada era feito. Havia uma ausência que lhe incomodava profundamente. Então, pela primeira vez, decidiu reunir um grupo e propor: “Vamos nós contar essa história?”


Reuniu a equipe poucos dias antes do lockdown e com o mundo repentinamente em silêncio, o projeto ficou guardado. Alguns meses depois, porém, a necessidade de fazê-lo renasceu. Ela insistiu: o filme tinha que acontecer. Entre os integrantes do coletivo havia um jovem de 18 anos, sem formação em audiovisual, mas familiarizado com tecnologia que topou ajudar. Passaram então a conversar com pacientes e participantes do coletivo, pedindo que gravassem vídeos e enviassem pela internet. Foi assim, no improviso e na distância pandêmica, que ela se descobriu diretora fazendo seu primeiro filme de forma totalmente autodidata, sem saber exatamente como se fazia cinema, mas guiada por uma intuição treinada por uma vida inteira assistindo filmes. Quando o filme do Cabrum Cannabis ficou pronto, quase simultaneamente surgiu a oportunidade de um curso online de audiovisual. Uma amiga indicou, ela se inscreveu, foi selecionada e começou os estudos, mas agora já com um filme concluído, nascido da pura prática, da intuição e do desejo.


Foi ainda durante a pandemia que um segundo filme começou a tomar forma. Uma comunidade quilombola que ela acompanhava havia 18 anos estava sob risco de expulsão por causa de um grande projeto de porto que avançava silenciosamente enquanto o país vivia a emergência sanitária. Ela já tinha uma longa trajetória de proteção àquela comunidade e acumulava muito material de arquivo, sobretudo fotografias, e poucos vídeos. Decidiu então transformar esse acervo e novas entrevistas em um filme que pudesse fortalecê-los. Nasceu No Meio do Caminho tem Quilombo, obra que ela guarda com especial carinho, por ser um filme de resistência, concebido no calor de uma luta urgente.


 Projeto Adolescer com o Cinema (Foto: Thiago Breda)
 Projeto Adolescer com o Cinema (Foto: Thiago Breda)

Projeto Adolescer com o Cinema

A ideia do projeto Adolescer com o Cinema (projeto esse que meu filho faz parte e foi onde conheci Carol) surgiu em 2024, onde começou a refletir sobre como unir suas experiências no Serviço Social à potência do audiovisual, criando uma forma mais lúdica e afetiva de dialogar com as crianças. Ela queria que raça, classe e gênero pudessem ser trabalhados com sensibilidade, profundidade e respeito, mas fugindo do moralismo, da rigidez e do cansaço que já marcavam aquelas relações pós-pandemia. O cinema apareceu, então, como ferramenta e como caminho. Mas não como uma exibição semanal em salas escuras, até porque não existe mais cinema acessível em Campos. O que restou são salas de shopping, com programações quase sempre alienantes e distantes da realidade das crianças. Assim, o que nasceu não foi “cinema para as crianças”, “mas cinema com as crianças’’, o cinema como presença, como método e como linguagem que acompanha a formação ético-moral dessa nova geração. O Adolescer com o Cinema foi pensado justamente para isso: para que as crianças conheçam sua própria realidade, reflitam sobre as condições da sociedade e entendam como raça, classe e gênero atravessam suas vidas e seus territórios. O projeto quer que elas reconheçam a sabedoria dos mais velhos, valorizem o lugar onde moram, percebam sua comunidade como espaço de produção de cultura, conhecimento e trabalho. E mais: que descubram, desde cedo, que também podem fazer filmes. Que filmar pode ser profissão, ferramenta política, exercício de autonomia e de consciência de classe. Que elas são filhas e filhos de trabalhadores, e que o estudo, permanece sendo caminho de emancipação, de resistência e de reexistência.


São Francisco do Itabapoana (Foto: Divulgação/Prefeitura de SFI)
São Francisco do Itabapoana (Foto: Divulgação/Prefeitura de SFI)

Tive a oportunidade de assistir a um de seus documentários no Festival Internacional Goitacá de Cinema. Perguntei sobre como nasceu a ideia de produzir o Aje Bihuh, documentário sobre a produção da farinha de mandioca em São Francisco do Itabapoana e ela me contou que vinha realizando uma pesquisa profunda sobre o trabalho na região, concentrando-se em ofícios artesanais que resistem ao tempo, ainda que muitos estejam ameaçados pela mecanização e pela transformação acelerada dos modos de produção. Seu olhar pousava sempre sobre os trabalhadores e trabalhadoras que sustentam práticas quase ancestrais: a carpintaria naval, o trabalho das marisqueiras, a pesca artesanal, o corte de cana, a fabricação da farinha e da tapioca, mas sempre fazendo conexões com as memórias alimentares dos povos indígenas e da população negra. Ele nasceu do interesse especial da diretora em colocar as mulheres no centro da narrativa. Em todas as suas obras, esse olhar para a presença feminina nos processos produtivos é uma constante, e aqui não foi diferente: ela queria compreender como as mulheres se relacionam com a fabricação da farinha, como sustentam esse trabalho e como carregam, no corpo, as marcas dessa atividade. O que ela encontrou nesse universo foi bem distinto do cenário do corte de cana, por exemplo, onde aparece a exploração direta das grandes usinas e dos fazendeiros. Nas fabriquetas de farinha, a realidade é outra: trata-se, em sua maioria, de pequenos produtores, famílias que trabalham juntas, dividindo esforços e mantendo um modo de produção artesanal que, apesar de exaustivo, conserva uma beleza própria. Em todas as casas que visitou, a diretora encontrou proprietários que plantam, colhem, carregam caixas e realizam as atividades mais pesadas lado a lado com trabalhadores e trabalhadoras. É um mundo em que a produção tem cheiro de roça, de calor, de terra e de pertencimento.


Aje Bihuh é, portanto, uma obra que registra a força dessas mulheres, a estética de um mundo que resiste e a dureza de uma vida que muitas vezes passa despercebida. É um retrato sensível de um trabalho que ao mesmo tempo é beleza e esforço, também é identidade e luta.


Futuro do Cinema e Sonhos de Projetos Para as Crianças

Conversamos sobre o cinema brasileiro e quais temas ela achava que poderiam ser mais explorados, ela destacou que existem temas que o país ainda aborda muito pouco. Não se trata apenas de superficialidade, embora isso também ocorra, mas sobretudo de ausência. Para ela, ainda tratamos muito pouco da nossa história com a ditadura, do genocídio indígena, da visibilidade do povo negro, dos povos de descendência indígena, das religiões de matriz africana, das questões de gênero e, principalmente, da classe social. Na avaliação dela, isso acontece porque o cinema no Brasil ainda é elitista. As narrativas que chegam ao circuito comercial são, em sua maioria, construídas a partir do olhar da classe média e da classe média alta. Quando a população periférica aparece, muitas vezes surge de maneira caricata, distante da complexidade e da dignidade de suas vidas reais. Ela costuma dizer que, basta observar a ficção brasileira, para perceber como a maior parte dos personagens e histórias ainda não representa o povo que compõe a maior parte do país.


Mas também reconhece que algo novo está acontecendo. No século XXI, com a digitalização e a ampliação do acesso à tecnologia, um movimento forte de cinema periférico e independente vem crescendo. Muitos filmes têm revelado a vida das periferias e dos trabalhadores com uma força estética e política que ela considera riquíssima. Há uma produção enorme e diversa especialmente em curtas-metragens. O problema, segundo ela, é que essas obras não chegam ao grande público. Não entram no circuito nacional, não passam nas grandes redes de cinema e no Brasil, ainda carregam pouco valor fora dos festivais. Plataformas como YouTube têm ajudado na circulação, ampliando o alcance desses filmes, mas ainda é insuficiente diante das barreiras impostas pelo mercado exibidor.


Lagoa Feia em Ponta Grossa dos Fidalgos (Foto: Arquivo Pessoal)
Lagoa Feia em Ponta Grossa dos Fidalgos (Foto: Arquivo Pessoal)

Em 27 de novembro, aconteceu o encerramento do projeto Adolescer com o Cinema com as crianças do 5° ano da Escola Municipal José de Azevedo em Ponta Grossa dos Fidalgos, ela costuma dizer que o maior sonho dela é que as crianças possam sonhar. E esse sentimento ficou ainda mais forte quando filmou com o aluno Théo Alves e com as outras crianças. O roteiro do curta, tão simples e tão profundo, havia sido escrito por ele. Uma história sobre voar. Não o voo literal, mas o voo que nasce do desejo, da imaginação e da consciência da própria classe social.


Carolina de Cássia com o aluno Théo Alves e outras crianças do projeto (Foto: Mariana Alves)
Carolina de Cássia com o aluno Théo Alves e outras crianças do projeto (Foto: Mariana Alves)

Durante semanas, ela estava angustiada porque queria transformar aquele roteiro em uma animação. Tinha imaginado tudo: cada desenho, cada cena, cada linha de movimento da história criada pelo Théo, mas ninguém pôde ir até a escola para ensinar a turma a animar, e isso a deixou inquieta. Até que, decidiu: vamos fazer esse filme assim mesmo. Curtinho, talvez com menos de cinco minutos, mas com uma força que não poderia ser perdida. Apesar de curta, aquela pequena história falava de algo muito maior. O sonho do menino tocava diretamente na questão da classe social, no desejo de ultrapassar fronteiras impostas desde cedo, na capacidade de imaginar outros mundos possíveis. E isso, para ela, era de uma beleza imensa.


Quando descreve seu sonho, ela fala de voos metafóricos: voar estudando, voar descobrindo novas profissões, voar transformando territórios. Imagina as crianças vivendo em um lugar como Ponta Grossa e ao invés de naturalizar a falta de investimentos, podendo transformar aquele espaço. Ela visualiza ali uma comunidade viva: uma cooperativa de mulheres que trabalham com pescado, rodas de jogos e tradições, música sendo criada à beira da Lagoa Feia, jovens praticando esportes aquáticos, remando, nadando, ocupando o território de forma digna e plena. Para ela, esse é o sonho que importa: que as crianças entendam que podem lutar para conquistar tudo isso. Que percebam que o mundo delas pode ser maior do que o delimitado pela desigualdade. Que se organizem, imaginem, reivindiquem. É isso que ela deseja com o projeto e também com cada intervenção do Serviço Social. Ela quer, de alguma forma, plantar esse desejo de transformação nas pessoas. Quer que cada filme, por menor que seja, funcione como uma semente. Um grão de areia que, mesmo pequeno, participa da formação da praia inteira. Sementes que germinam devagar, mas germinam.


E quando termina de falar sobre tudo isso, ela ri de um jeito leve, como quem acredita profundamente no que diz. Nos despedimos, ela me dá bom dia, deseja paz e fico com a certeza de que ela tem a sensação de que o cinema, por menor que seja, já está ajudando a fazer alguma coisa florescer.

 
 
 

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